sábado, 18 de outubro de 2014

Nimbo

Fazia um bom tempo que não sentia mais as gotas de chuva. Meu rosto quente estranhou a baixa temperatura. Vento, frio e torrente. E antes que pudesse me dar conta, fui tomado pela tempestade. Sem sombra ou sombrinha, a alma lavada e os pés que imaginaram um perfeito sapateado, procurando poças para improvisar a coreografia. O conforto como uma vaga lembrança. O calor como lenda antiga. A mente encharcada de melancolia.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Ferrugem

A grande casa no pequeno mundo. Os detalhes feitos de feitos simples, práticos, úteis. Tua marca em cada canto. Em cada canto, uma nota triste. Aqui, a saudade maior em lá menor. Paredes distantes que ainda reverberam tua sabedoria cheia de bom humor. As histórias dentro das histórias dentro das histórias. O cheiro bom pedindo mais uma visita à cozinha. A alegria, a paciência, a serenidade e a atenção. Observar este lugar é te observar. É conversar contigo sempre e, como sempre, escutar mais que falar. É se dar conta da fragilidade de tudo. É querer distorcer o tempo. É querer acordar. É ter vontade de escrever sem vontade.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Válvula

Criei meu mundo fantástico, de incontáveis detalhes e beleza admirável. Tão vasto e real que meus olhos se confundem, meu coração se desorienta. Um mundo paralelo à minha consciência, fazendo-se presente desde o acordar e desaparecendo quando chego ao meu sono profundo. Seus caminhos se misturam aos meus, e alterno minhas escolhas com tamanha frequência que a linha divisória entre realidade e desejo não é percebida com clareza. Mas não reclamo, a finalidade é justamente essa. Não faria sentido criar um mundo do qual eu não fizesse parte. Preciso viver nele simultaneamente e sentir saudade de estar dentro dele, fazer de cada pedaço de minha criação algo raro e precioso, insubstituível. Amar esse mundo feito um improvável deus que se importa. Dessa maneira, ainda que esteja só, sinto-me livre.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Na Areia, a Casa dos Reis

Os olhos que tentam perseguir todos os movimentos das pessoas no salão, mesmo com a visão prejudicada. A coleta mental de dados para produzir estatísticas instantâneas que nunca divulgarei. O tempo acelerando junto aos pensamentos, em desespero crescente e visível. A fome, a sede e o medo de me ver como a causa do problema. O afastamento involuntário, a vontade de interromper o diálogo para falar mais alto.

A realidade que veio inadvertidamente como um soco no estômago e roubou meu repouso, meu ar e meu equilíbrio. Que me fez perceber a ausência de chão e tornou a queda infinda. A espera pelo derradeiro impacto que, sei bem, quebrará meus ossos e me fará cuspir o sangue pela boca.

Não tenho pressa por desconhecer a velocidade e choro pela inevitável falta de resistência que fantasiava possuir.

Nunca estarei só, mas assim sempre o serei.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Disfarce

Da solidão que conforta e impõe temor sou escravo e dependente, desejando assim ser, enquanto durar meus longos dias. De passividade tola visto minha coragem cansada. Posso então conhecer meus limites sem ser genuinamente ingênuo. E entre ter a consciência de não servir para aceitar de bom grado o que me é oferecido e camuflar a vontade inquieta por mudança, escolho a segunda alternativa. Porque o grito ecoará mais forte e duradouro ao desistir de tudo.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Apofenia

Estão jogadas por toda parte, pelo tempo de uma vida, as músicas, as imagens e as sensações que ajudaram a me definir. Tu podes embaralhá-las exaustivamente, dias a fio, não importa. É fácil rearranjá-las, acostumei-me a isso. Porque teus muitos nomes aparecem constantemente, são meus guias na ordem das coisas. Ainda que os períodos sejam irregulares, ainda que algum lapso me faça esquecer algum detalhe, há métrica em tudo. Porque sempre diferente e repetitivo ao mesmo tempo. Muda um local, um intervalo, uma opinião. Mas a estrutura permanece, mesmo com disposições aleatórias. Dito isto, não há uma só vez que eu não me surpreenda com a previsibilidade que carregamos em nossa psicopatia.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Suspense

Seu aviso de chegada não passou pela peneira de meu ceticismo. Ela é amável e não sai de meus pensamentos, mas a probabilidade de aparecer ali era pequena. Um caminho fora de sua rota, o horário não muito favorável e algumas doses de álcool para alimentar seu cansaço. Ela não viria, certamente, e eu entenderia. Muitas vezes dizemos essas coisas automaticamente, prometemos fazer uma visita ou nos encontrarmos por aí (“a gente se vê”)... Entretanto, em algum ponto, mudamos de ideia, a preguiça nos amarra, procrastinamos. E a vida segue sem maiores incidentes. É o que normalmente acontece, certo? Talvez por isso a surpresa ao vê-la abrindo a porta do bar. O sorriso, a voz doce, os gestos pausados e a serenidade, tudo em uma involuntária sincronia para me fazer entender o quanto foi maravilhoso estar errado. Pareceu breve demais, como todas as coisas boas, mas foi o suficiente para perceber a diferença que ela fez. E continua fazendo.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Amianto

Ando com calma, não corro riscos.
Rabisco redemoinhos nas laterais do caderno.
Sempre à margem.
Rio sem mostrar os dentes de fumo.
Trago em minhas mãos apenas tua foto em preto e branco.
Dou-lhe cor mentalmente - é sempre diferente, todas as vezes.
Multiplico as alegrias de um coração que ainda queima,
mas é incapaz de mostrar seu ardor.
E chamas meu nome apenas em delírios meus.
O que mais tenho, além de uma loucura que jamais será extirpada?

domingo, 28 de outubro de 2012

360º

No carro em alta velocidade, cada volta no circuito fechado é uma corrida inútil contra o tempo, porque tento alcançar o passado. Vejo sempre a linha de chegada, mas gostaria de reconhecê-la como ponto inicial, sentindo a mesma ansiedade que havia no começo de tudo, e acreditando que tudo seria possível após o sinal verde.

É estranho perceber a mudança de pensamento ao sentir saudade das próprias ideias.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Desmemória

Não está mais lá. Parece absurdo, inacreditável a princípio, mas realmente os vestígios desapareceram completamente. Sobraram apenas migalhas de lembranças distorcidas e desfocadas da infância. Um período tão fértil quanto efêmero que agora se assemelha a sonhos enevoados. Dos registros vem outra surpresa: reconheço neles minha letra, minha sensibilidade, mas não sobrevivem a uma revisão. A ficção omito, o resultado são páginas em branco e silêncio. Pode ter sido uma longa embriaguez, um delírio febril. Ou apenas eu que não estava lá.