segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Som de Suas Asas


Este momento lhe parecia breve, embora estático. Inevitável lembrar de todo o suor gasto e da família de calos nos pés que até ganhavam nomes próprios tal obstinada era sua companhia. E inútil foi achar que uma coleção de pensamentos durasse mais que um segundo ao fitar o abismo diante de si.

A mistura de medo e excitação fazia com que ele se mantivesse a um passo da desconhecida liberdade e inclinasse sua cabeça a fim de tentar medir a altura do ponto onde estava até o chão, mas isso era impossível. Ouvia uivos convidativos de um vento querendo lhe abraçar e por breves momentos achava que seria fácil se deixar levar por um sopro de vida. Então vinha a razão e zombava de sua coragem passageira.

A cena se repetia por mais tempo do que podia se dar conta, cada vez com uma intensidade maior. Um medo crescente que só era alcançado pela vontade de dar um pequeno passo à frente. Nem precisaria de impulso, ele pensava. E apenas um leve desequilíbrio o fazia apoiar-se com mais força à parede de pedra ao seu lado.

Não entendia o que o motivava a desafiar um mundo que não lhe pertencia. Só sabia querer estar ali e ir adiante. Havia chegado, porém, ao que lhe era permitido, caso insistisse em permanecer acreditando que nada havia nele além de pernas fracas e um rosto cansado. O caminho minou todas as suas resistências e já não havia mais nada a fazer. Voltar sequer era uma opção, pois não faria o menor sentido.

Foi quando a última lágrima correu sobre sua face que ele a coletou e guardou num pequeno recipiente de vidro. Antes de fechá-lo hermeticamente certificou-se de que punha ali também sua consciência. Guardou-o num vão entre as rochas e sentiu-se imediatamente puxado pela corrente de ar. Não sabia mais nada do que era. Não havia como perceber se estava caindo ou levitando e não parecia fazer diferença alguma.

Num vôo cego a amnésia significava sua felicidade.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Les Mort-vivants


Os dois andavam sozinhos e desorientados, cada um por um caminho desconhecido do outro. Em comum, a fome que não se saciava e a sensação de parecerem deslocados em qualquer ambiente. Seus pares não eram exatamente seus semelhantes e, por isso, seus alimentos eram escassos. Ao compartilhar da refeição alheia, pareciam mostrar que se esforçavam em fazer parte de algo, talvez para lembrarem-se vivos. Sabiam, porém, que seu apetite não seria satisfeito. Caminhavam, então, à procura de alento.

Após um período que não se poderia determinar, mas longo o suficiente para sentirem-se acomodados, os andarilhos encontraram-se acidentalmente. Demorou algum tempo para perceberem que estavam na mesma busca. Surpreenderam-se ao descobrir que carregavam dentro de si o sustento do outro. O banquete foi servido e, ao que parece, a fartura é inesgotável. Mas agora há outra preocupação, algo novo e inesperado, que lhes foge o controle: estão famintos também por um apocalipse.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Em Três Tempos


O longo caminho da primeira lágrima é marcado por um desespero verborrágico e a necessidade de não mais tentar abrandar o fogo invisível a olhos desatentos, mas que arde e consome tudo o que me é intrínseco.

A próxima não é percebida de fora, porém chega letal, ainda que brevemente. O golpe me joga trezentos mil quilômetros adiante e mal percebo que somente um segundo se passou.

E o que parecia perdido em definitivo mostrou-se repentinamente diante de meus olhos, como se ali sempre estivesse.

Então veio a terceira lágrima. Esta fez (e faz) um caminho diferente, às vezes oculto, outras vezes explícito, mas infindável, renovando-se a cada lembrança do que foi o momento mais feliz em muito, muito tempo.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

À Gentil Irmã do Homem da Areia

De todos os sonhos amigos de longa data és a antítese, uma vez que assombras minha razão com maior frequência enquanto acordado. Entender-te não é fácil, tal ausência de vilania e estardalhaço em tuas maneiras. Tua presença configura meu silêncio, mais por sugestão e menos por medo. É esta a hora em que me percebo imberbe há décadas e insisto inutilmente parecer mais velho à tua inspeção. Tendes a acreditar que minhas tolices são o comportamento padrão ou simples e sabiamente as ignora, não sei ao certo. Minha ignorância aliada à ansiedade aumenta teu mistério. Sendo assim o tempo todo, contento-me com as pistas que espalhas por baixo de minha pele. És o mais doce enigma a ser decifrado, um teorema que desafia a lógica e a dedução. E toda a consciência não é significativa ao saber que representas a injeção letal de todos os anseios que desejam virar uma realidade perene. Tens a mim e tua também é a minha necessidade urgente de metamorfose. Quero então que saibas que morrerei feliz quando cantares para mim.