quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
Suspense
Seu aviso de chegada não passou pela peneira de meu ceticismo. Ela é amável e não sai de meus pensamentos, mas a probabilidade de aparecer ali era pequena. Um caminho fora de sua rota, o horário não muito favorável e algumas doses de álcool para alimentar seu cansaço. Ela não viria, certamente, e eu entenderia. Muitas vezes dizemos essas coisas automaticamente, prometemos fazer uma visita ou nos encontrarmos por aí (“a gente se vê”)... Entretanto, em algum ponto, mudamos de ideia, a preguiça nos amarra, procrastinamos. E a vida segue sem maiores incidentes. É o que normalmente acontece, certo? Talvez por isso a surpresa ao vê-la abrindo a porta do bar. O sorriso, a voz doce, os gestos pausados e a serenidade, tudo em uma involuntária sincronia para me fazer entender o quanto foi maravilhoso estar errado. Pareceu breve demais, como todas as coisas boas, mas foi o suficiente para perceber a diferença que ela fez. E continua fazendo.
terça-feira, 11 de dezembro de 2012
Amianto
Ando com calma, não corro riscos.
Rabisco redemoinhos nas laterais do caderno.
Sempre à margem.
Rio sem mostrar os dentes de fumo.
Trago em minhas mãos apenas tua foto em preto e branco.
Dou-lhe cor mentalmente - é sempre diferente, todas as vezes.
Multiplico as alegrias de um coração que ainda queima,
mas é incapaz de mostrar seu ardor.
E chamas meu nome apenas em delírios meus.
O que mais tenho, além de uma loucura que jamais será extirpada?
Rabisco redemoinhos nas laterais do caderno.
Sempre à margem.
Rio sem mostrar os dentes de fumo.
Trago em minhas mãos apenas tua foto em preto e branco.
Dou-lhe cor mentalmente - é sempre diferente, todas as vezes.
Multiplico as alegrias de um coração que ainda queima,
mas é incapaz de mostrar seu ardor.
E chamas meu nome apenas em delírios meus.
O que mais tenho, além de uma loucura que jamais será extirpada?
domingo, 28 de outubro de 2012
360º
No carro em alta velocidade, cada volta no circuito fechado é uma corrida inútil contra o tempo, porque tento alcançar o passado. Vejo sempre a linha de chegada, mas gostaria de reconhecê-la como ponto inicial, sentindo a mesma ansiedade que havia no começo de tudo, e acreditando que tudo seria possível após o sinal verde.
É estranho perceber a mudança de pensamento ao sentir saudade das próprias ideias.
É estranho perceber a mudança de pensamento ao sentir saudade das próprias ideias.
terça-feira, 10 de julho de 2012
Desmemória
Não está mais lá. Parece absurdo, inacreditável a princípio, mas realmente os vestígios desapareceram completamente. Sobraram apenas migalhas de lembranças distorcidas e desfocadas da infância. Um período tão fértil quanto efêmero que agora se assemelha a sonhos enevoados. Dos registros vem outra surpresa: reconheço neles minha letra, minha sensibilidade, mas não sobrevivem a uma revisão. A ficção omito, o resultado são páginas em branco e silêncio. Pode ter sido uma longa embriaguez, um delírio febril. Ou apenas eu que não estava lá.
segunda-feira, 18 de junho de 2012
Vir A Mim
Criar o monstro. Esculpir seus olhos, dentes, garras, chifres, corpo. Detalhar a textura da pele, escolher pacientemente as tonalidades da paleta, definir suas deformidades físicas e atribuir-lhe a voz gutural. Estudar o melhor disfarce.
Olhar para dentro dele e imbuir-lhe personalidade crível e independente. Presenteá-lo com um passado, preenchendo cada compartimento de memória. Roubar-lhe a inocência, mostrando a ele todo o mal. Justificar suas ações e aceitar suas reações.
Alimentá-lo, fornecer-lhe abrigo, treiná-lo. Torná-lo dependente de teus cuidados. Falar com ele e tornar-se tão dependente quanto. Amá-lo e escondê-lo do mundo e de teu egoísmo. Temer suas aparições aleatórias. Esquecê-lo.
Assustar-se ao vê-lo novamente. Desistir de conter o calafrio e o desespero. Tentar fugir dele até reconhecer-se inútil, patético e grotesco. Finalmente dar-lhe o primeiro abraço, para a estranheza de ambos. Recomeçar.
Olhar para dentro dele e imbuir-lhe personalidade crível e independente. Presenteá-lo com um passado, preenchendo cada compartimento de memória. Roubar-lhe a inocência, mostrando a ele todo o mal. Justificar suas ações e aceitar suas reações.
Alimentá-lo, fornecer-lhe abrigo, treiná-lo. Torná-lo dependente de teus cuidados. Falar com ele e tornar-se tão dependente quanto. Amá-lo e escondê-lo do mundo e de teu egoísmo. Temer suas aparições aleatórias. Esquecê-lo.
Assustar-se ao vê-lo novamente. Desistir de conter o calafrio e o desespero. Tentar fugir dele até reconhecer-se inútil, patético e grotesco. Finalmente dar-lhe o primeiro abraço, para a estranheza de ambos. Recomeçar.
domingo, 10 de junho de 2012
O Álcool, o Cigarro, as Mãos e o Fogo
Era o que havia: os raros minutos, as pequenas descobertas, os sonhos. A fixação em selecionar trilhas sonoras, as palavras reais dedicadas aos fantasmas, o desequilíbrio no universo, a sensação térmica rindo da previsão do tempo. E a rocha invencível e impiedosa, testando todos os meus limites.
À mesa, memórias servidas quentes para evitar distorções. A similaridade está em tudo, do ruído abafado das conversas ao frio que corta minha pele. Música, rostos conhecidos, minhas roupas e meu gradual desenvolvimento etílico. A mente detalha cada momento, cada espaço percorrido em sua companhia, mesmo tanto tempo depois.
Das voltas do mundo não me dou conta. Ainda estou onde e quando ele deixou de existir por um breve período. Desejo a chuva incessante para me fazer acordado, o vento forte inutilizando qualquer proteção. Mas apenas o deserto silencioso e constante é a mim concedido. A sede segue.
À mesa, memórias servidas quentes para evitar distorções. A similaridade está em tudo, do ruído abafado das conversas ao frio que corta minha pele. Música, rostos conhecidos, minhas roupas e meu gradual desenvolvimento etílico. A mente detalha cada momento, cada espaço percorrido em sua companhia, mesmo tanto tempo depois.
Das voltas do mundo não me dou conta. Ainda estou onde e quando ele deixou de existir por um breve período. Desejo a chuva incessante para me fazer acordado, o vento forte inutilizando qualquer proteção. Mas apenas o deserto silencioso e constante é a mim concedido. A sede segue.
sexta-feira, 25 de maio de 2012
Vintage
Ouço-te na música inocente do velho rádio. Estás a cantarolar sem saber, resumindo a letra da canção num “lá-lá-lá” de desafinado charme. Assovias o refrão enquanto ajeitas os bibelôs sobre o criado-mudo, sempre a mudar suas posições, quase a cada final de dia. Felicidade boba e verdadeira, como as que importam. És consciente disso. Sorris.
Da cama preguiçosa, fito-te próxima aos pequenos quadros de Elvgren na parede e posso fantasiar a inveja das musas ilustradas em pinceladas curvas. Desdenham de ti. Odeiam-te. Pois tu transformas suas belas formas e cores em rascunhos de grafite. Posas sempre, porque natural.
Soltas os cabelos louros lentamente e olhas diretamente para mim com teu olhar de fogo. Percebes minha crescente ansiedade a cada passo teu em minha direção e, ao me concederes o beijo que poderia ser o último, subtrais minha vida. E a suscitas de volta em meu corpo, logo em seguida, da mesma maneira. Tua é a noite. Meu é o privilégio.
Da cama preguiçosa, fito-te próxima aos pequenos quadros de Elvgren na parede e posso fantasiar a inveja das musas ilustradas em pinceladas curvas. Desdenham de ti. Odeiam-te. Pois tu transformas suas belas formas e cores em rascunhos de grafite. Posas sempre, porque natural.
Soltas os cabelos louros lentamente e olhas diretamente para mim com teu olhar de fogo. Percebes minha crescente ansiedade a cada passo teu em minha direção e, ao me concederes o beijo que poderia ser o último, subtrais minha vida. E a suscitas de volta em meu corpo, logo em seguida, da mesma maneira. Tua é a noite. Meu é o privilégio.
segunda-feira, 21 de maio de 2012
Sempre-noite
Não fosse a fornalha criada instantaneamente dentro de meu peito e a vontade de permanecer consciente para admirar o que me cega os olhos, teria morrido congelado antes de perceber o frio chegar junto à escuridão. Não posso chamar de controle o que é reação involuntária, mas falho ao tentar imaginar como poderia ser diferente, mesmo para outras pessoas. Ao primeiro olhar, a sensação de estar sozinho ainda que bilhões estivessem ao meu lado. As pupilas dilatadas se acostumam rapidamente ao negrume, pois há incontáveis pontos luminosos para onde quer que as direcione. São estes pontos que me interessam, deles sou parte. Quero me aproximar, sentir o calor materno e voltar ao ventre incandescente. A distância, entretanto, limita meus desejos, derrota minha utopia. Resta-me apenas vislumbrar o que é belo e raro pelo tempo que me é concedido, esquecendo-me do caminho de casa.
terça-feira, 1 de maio de 2012
Meu Mundo Repleto de Cinza
Ando depressa, embora meu raciocínio não consiga acompanhar a velocidade dos meus passos. Os buracos nas solas de meus sapatos. Ajeito minha roupa surrada enquanto caminho determinado e um tanto distraído. Minha gravata sempre torta. Atrapalhado que sou, não poderiam ser diferentes meus pensamentos. Arrumar dinheiro, não por esse caminho, aqui tem polícia, como é adorável a moça que vende flores, seus cabelos, seus olhos, minha fome, não comi nada hoje, preciso de dinheiro, ela é tão linda... O tempo passa acelerado, não me ajuda, e acabo não prosseguindo, pois preciso desviar sempre o caminho. Correr de quem me maltrata. Cansado, faminto, encontro novamente a vendedora que cheira a rosas. Peço desculpas, não poderei comprar flores. Ela me reconhece e diz que está tudo bem. Sorri e o tempo pára. Está tudo bem.
sábado, 28 de abril de 2012
Compasso
Ela dança sem parar. Seus movimentos delicados são improvisados de maneira perfeita, como se a melodia criasse vida própria e a acompanhasse conscientemente, adaptando-se para manter a sincronia. A luz fraca vinda da janela ao entardecer serve de holofote para seu pequeno palco, sala de estar nas horas vagas, fazendo cintilar as partículas de poeira que flutuam junto à fumaça do cigarro à mesa. Não há qualquer ruído em seus passos, leve e elegante bailarina. Ainda assim, parece pisar firme e confiante com seus olhos fechados e ouvidos atentos. Ouviria facilmente minha respiração, se eu não estivesse estático, espectador hipnotizado cheio de temor e desejo. Dominado pelo seu encanto, percebo-me tímido e incapaz de me reconhecer desperto. Ignoro meus pensamentos e dúvidas, resta-me a concentração para não piscar os olhos e correr o risco de perder décimos de segundo. Num momento está diante de mim, olhando pra mim, sorrindo pra mim. Noutro, balança suavemente os quadris, virando-se para outra direção, ela e eu nos esquecendo de minha existência. Apenas ela é. E será até que a música acabe.
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012
Quimeras
A ansiedade de Hyde para escapar de sua prisão mesmo que por
um breve momento. A impaciência do gigante verde que destrói a própria razão
antes de tudo. O inconformismo escarrado de Tyler diante do espelho sem nome. A
carência doentia de Norman rabiscada em vermelho-sangue. Dos respectivos pares,
o medo e a falta de comunicação. Dos outros, o desrespeito velado e o temor
servil. De si, a completa ignorância e um punhado de memórias desconexas. A
certeza cruel da solidão, a incapacidade de reconhecer a lógica, a reação
brutalmente instintiva. E a fome.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012
Dádiva
Tome para si esta pequena porção do que sinto. Guarde-a aí
dentro, o local mais seguro, para ser usada nos teus dias tristes. Porque assim
também são os dias que regem meus sentimentos.
Receba o meu não-abraço e o meu não-beijo em tua boca
repleta de silêncio. Sinta o não-calor de minhas mãos tateando delicadamente
teu rosto e teus cabelos. Um não-desejo. Um tempo não-eterno. Um não-amor capaz
de ignorar tudo o que está fora de lugar. E que nada pode.
sábado, 4 de fevereiro de 2012
Defeitos Um para o Outro
No pequeno mundo as pessoas sujeitas aos padrões que criam
espontaneamente não se dão conta que limitam a diversidade. Porta afora o que se vê
é a mesma película gasta pela continuidade da projeção, um cinema antigo sem ar
condicionado, poltronas rasgadas e som repleto de falhas.
Sempre assistindo a tudo, observando os detalhes, há os dois
ratos de auditório. Compartilham histórias que presenciaram e que merecem ser
gravadas em forma de notas mentais. O vício é tão antigo quanto eles podem se
lembrar.
Rir é um comportamento tão natural que duvidam da existência
de outro gênero cinematográfico. Ainda que o que vêem seja triste e lamentável,
o sarcasmo consegue encontrar seu espaço. É assim com seu próprio
média-metragem, a ironia de se perceberem rindo de si mesmos ao invés de
calarem sua amargura.
A pipoca é boa, o cinema sobrevive.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
Putos e Ladrões
A chuva torrencial desaba sobre os paralelepípedos que
acabam no cortiço. Parece querer lavar toda a imundície da rua junto aos
pecados ali escondidos, uma vez que não há quem possa lembrar quando a água
começou a cair do céu, muito menos um só vivente que ouse prever o fim dos maus
tempos.
Sobram na sarjeta os papelões agora definitivamente
inutilizados e as garrafas vazias de qualquer álcool, pois bêbados e mendigos escolheram
não se banhar. A rua está deserta, a hora, incerta. O céu está escuro há tanto
tempo que é impossível saber se a noite compareceu ao seu compromisso. Há os
constantes clarões dos relâmpagos, a parca iluminação titubeante de um poste
baixo na calçada e algumas poucas luzes nos quartos dos prédios antigos.
Poucos andares acima do nível do chão, protegidos pelo
desconforto de suas vidas solitárias, dois vizinhos se observam pelos vidros
fechados das respectivas janelas. Entre eles, o beco encharcado pelas infinitas
gotas de canivete e o ruído abafado dos trovões, escarcéu da ira divina em vão.
Ele ouve o mesmo disco de Ray Charles sem parar, é a única
voz que consegue se sobressair ao chiado de seus vinis empoeirados. Ela já se
acostumou com o som compassado dos pingos que caem do teto na bacia de metal e
nota apenas os miados de um gato faminto que passeia por suas canelas. Como um
brinde improvisado, ele bebe um gole de seu precioso combustível enquanto ela
acende mais um cigarro e puxa o cabelo para trás. Os olhares não se desviam.
Ele respira pausadamente numa tentativa inútil de organizar seus pensamentos.
Ela mal consegue manter suas mãos paradas sobre a mesa. Ele rabisca um desenho
no vidro embaçado por seu hálito. Ela balança a cabeça e ri timidamente para si
mesma. Algo mais que álcool ou tabaco aquece seus corpos.
É esse pouco que têm para despistar a tristeza. E o que é
pouco se torna extremamente importante. Pois sofrem com a angústia de saber que
a chegada do Sol é inevitável, porém imprevisível. Quando isso acontecer
deverão descer até a rua, colocar os pés no chão e desaparecer em meio aos
demais fodidos marginais maltrapilhos, esperando pela próxima tempestade.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Cosmopolita
Lá do alto conhece o paradoxo de se ver gigante ao término
de uma jornada e sentir-se minimamente pequena ao perceber o mundo com a visão
periférica. Às vezes é o topo da montanha. Às vezes é o hemisfério norte. “Lar”
não é limite geográfico, mas, sim, onde o coração se alegra. Feita de paixão e
curiosidade não poderia ser diferente.
O caminho é sem volta, em todos os sentidos. Não deseja a cura
para esse vício, se é que esta existe. Tampouco existe realmente um retorno,
porque a viagem se encarrega de transformar o viajante. É assim que, mesmo num
ambiente familiar, em companhia de seus conhecidos de longa data, sente-se
constantemente em trânsito e compreende a beleza de não pertencer exclusivamente
a lugar algum.
Reivindica para seu corpo um merecido descanso. Nada muito
exagerado, apenas o suficiente para repor as energias. Seu pensamento acelerado
alterna entre os novos velhos amigos e as adoráveis histórias colhidas na
última experiência. O brilho nos olhos e o sorriso denotam, além da satisfação,
a certeza do que fazer em seguida. É preciso sempre criar caminhos para a
aventura de criar caminhos. E compartilhar horizontes.
(Dedicado à Isa, amada
sista e minha cidadã do mundo preferida)
No Quadro Negro Desenho Constelações
Os andarilhos noturnos são perceptíveis aos meus olhos nus somente
quando lhes dedico total atenção, mas minha vista tem falhado nos últimos
tempos. A nitidez das coisas fora substituída pela incerteza da imagem desfocada
e nebulosa. Reparo a alto custo.
A imprecisão de tua trajetória não me dá certeza de estar em
rota de colisão. Confiar em meus instrumentos evita que eu cometa um erro de
cálculo e não esteja presente para absorver o impacto. E isso é o que mais preciso
neste momento.
Estou sujeito à imprevisibilidade, pois as estrelas me falam
apenas do passado. Lembro-me, então, dos eventos observados e registrados
mentalmente: a grande explosão, a formação da atmosfera, a chuva de meteoros, o
eclipse e o distanciamento constante da galáxia que procura conforto na
escuridão. Lembro ainda o quanto desejo me lançar ao gélido espaço para
observar o mundo azul através de outras órbitas. E permaneço agitado.
Tenho a gravidade, mas enquanto pulsar meu coração o Mar da
Tranquilidade fugirá do meu alcance.
Válido Silício
O andróide caminha silencioso pelo campo de testes da
fábrica. Programado para consertar seus pares autômatos, sua rotina consiste em
analisar cada problema, executar a melhor solução seguindo suas diretivas de
prioridade e emitir uma notificação referente à unidade verificada.
Por ser detentor de avançada inteligência artificial, capaz
de aprender e se aprimorar com a experiência de seu trabalho, possui restrito
tempo de funcionamento. Sua utilidade tem prazo estabelecido para expirar e após
este período deverá ser desativado, como forma de proteção para seus criadores.
O aperfeiçoamento da programação original é aceitável até ultrapassar um
determinado limite e então ser considerado avaria permanente. Um forte
indicativo desta situação é a tomada de decisão em relação a reparos extras,
fora da ordem estabelecida em seu cronograma.
Ainda que registre as datas desde sua ativação, não possui
parâmetros para quantificar sua vida útil, uma vez que tal informação não é
encontrada em seu microchip. Como acontece aos demais andróides de sua classe,
o direito ao auto-reparo lhe é negado. Todos os seus componentes possuem o
mesmo e único registro de série e ele não tem autorização para substituí-los ou
modificá-los.
No momento em que efetua mais uma análise, seu sistema
identifica falha interna. Há uma sobrecarga na capacidade de processamento
devido à avaliação mais detalhada da unidade, pois esta não apresenta qualquer
indício de mau funcionamento. O processo torna-se cíclico até comprometer a
integridade lógica do andróide. O dano é irreversível.
A recuperação de sua base de dados é realizada
automaticamente, então ele é desligado. Em seu último relatório, a previsível mensagem:
“Erro ao ser analisado”.
Resumo
Nina não quer deixá-lo dormir. Canta docemente sua tristeza
e a dele, fazendo-o pensar que nada pode ser mais bonito. É música que o faz
chorar mesmo sem motivo, pois, neste caso, não carrega o fardo da nostalgia.
Gostaria somente de poder compartilhar Nina.
O texto que pensava ser prioridade não sai. Em seu lugar,
páginas e páginas de autocomiseração pública. Bate na mesma tecla com cuidado
para não machucá-la, esquecendo de proteger a si próprio - seus dedos traduzem
a dor de todo seu corpo.
Recusa-se a acreditar que criou este mundo, ainda que pareça
ser o único preso a ele. Reconhece, porém, que a história não termina para quem
a percebe iniciada.
Carrossel Quebrado
Na primeira hora da alvorada despertou com a preocupação
ingênua de contar seus pertences, como se precisasse garantir que nada havia
sumido. Jogos, brinquedos, alguns livros para colorir, estavam todos em seus
devidos lugares. Tomou leite, comeu pão com geléia de morango e logo foi
brincar.
Mais tarde, ainda não totalmente desperto, novos interesses
apareceram, novos itens colecionáveis lhe foram apresentados e, um a um,
adicionados às prateleiras de seu quarto. Discos, revistas em quadrinhos,
filmes, livros, brigavam entre si por espaço e atenção. Tomou duas xícaras de
café puro, sentou-se à beira da cama e ficou mais uma vez indeciso sobre o que
fazer em seguida.
Mal havia parado de bocejar e já se convencia de que
entendia tudo sobre todo mundo. Muitos amigos chegaram e saíram, ajudando e
atrapalhando. Suas musas jamais o entenderam completamente. Procurou a bebida
alcoólica mais próxima e se viu com uma escolha relativamente simples em suas
mãos. Ponderou brevemente entre adequar-se e correr o risco de adquirir amnésia
ou compor uma melodia que reverberasse em seus pensamentos para sempre.
Optou pela eternidade. Contudo, ao se dar conta de que seu tempo
jamais chegaria ao meio-dia e, consequentemente, não conheceria o calor máximo
do Sol, chorou por alguns instantes. Voltou-se para a companhia segura de seus
objetos inanimados tão estimados e logo esqueceu o significado da tristeza. A
partir daquela manhã sem fim a criança nunca mais envelheceu.
À Sombra Daquela Árvore
Amanhece e vamos juntos ao ponto de desencontro onde a
teimosia abraça a vontade da discussão. Sólidos argumentos arruinados por
piadas toscas, sem qualquer dano a não ser pela barriga dolorida devido às
gargalhadas. Revezamos as idas à farmácia da esquina para curar nossa sede.
Ignoramos a existência das diferenças, a obviedade não nos interessa.
Comparamo-nos com base em nossas decepções pessoais e nos concedemos o direito
ao lamento. Respeitamos espaços e vícios, matando imaginários coelhos fofinhos
até chegar à contagem de dez. Vemos muito e muito lemos. Pensamos em sincronia
e citamos as mesmas referências. Ao invés de flores, dou-lhe Orquídea Negra. Disputamos
o fictício status nerd. Jogamos ao vento o plano B após esquecer o plano A,
pois desejamos o falível e o improvisado. Rimos feito idiotas das coisas mais
sérias e brindamos à nossa estupidez. Enquanto mudo sua vírgula de lugar, ela
aponta uma nota que não combina com o resto da música. É final de tarde e ainda
nos protegemos do Sol.
LSD
Vestida para matar, ela esbarra intencionalmente em mim
quando estou distraído e me assassina ao apenas sugerir um olhar. Numa inocente
vingança, afirmo na canção que ela terá qualquer coisa que desejar e a mato
suavemente.
Quer conversar, fumar e conversar, beber e conversar. Para
isso, afasta repentinamente os obstáculos, fazendo de meu coração um pedal
duplo de bateria de trash metal. Em mais um de seus atos espontâneos, aproxima
sua cadeira e compara a anatomia de nossas mãos.
Emudece ao descobrir o que não consegui esconder por muito
tempo, deixando-me em companhia da dúvida e do medo por algumas horas. Ainda
sem mover os lábios e sem emitir som algum, diz que está tudo bem e me abraça.
Longe de tudo, paga-me uma cerveja, diz que está confusa e compartilha
sua insanidade através de um beijo. À distância, quer saber da simplicidade de
minha utopia e se surpreende e se alegra com minhas respostas. Quase
sussurrando, diz que me odeia e me faz acreditar na mais bonita das
possibilidades, porque entendo perfeitamente o que isso significa.
E, então, rompe.
Diferente de tudo rompe de modo brusco, apresentando apressadamente
o conteúdo sem se preocupar com a forma. Em vão, prometo entender e retornar à
quietude de meu canto. Mas a música ainda mescla tons e tonalidades e as
paredes do quarto continuam derretendo enquanto flutuo. O efeito persiste em
meus sentidos aguçados, só lamento que não fabrique o entendimento.
Secretária Eletrônica
Como está você é o que realmente eu gostaria de saber. Não
seria nada mal ouvir uma resposta que não fosse monossilábica e automática.
Porque me importo, além de qualquer necessidade. E pensar em você é tudo o que
faço de meus dias, mesmo sem abdicar de minha atual rotina.
Entre o “dever” de conter as palavras claras e diretas e a
exposição do grito que resiste abafado e trancado, encontro meu lugar. Como
consequência, horas de filosofia de almanaque em silêncio combinadas a metáforas
escancaradas para quase ninguém ler. Assuntos internos investigados
superficialmente.
O pouco que sei sobre você vem do lugar onde procuro suas
pistas deixadas de propósito. É praticamente uma troca de mensagens sem a
intenção de. Um diálogo criptografado de maneira tão impressionante que, mesmo
após ser decifrado, está sujeito a interpretações. O sarcasmo se encarrega de
fazer a comparação com alguma escritura dita sagrada.
Depois de passar um longo (e provavelmente desnecessário)
período ausente, é inevitável alimentar-me de recordações aleatórias, assim
como divagar sobre quais seriam as suas lembranças, se ainda existem, se têm qualquer
relevância em sua vida.
Moldo você como amiga íntima invisível, testemunha de cada
instante entre um nascer e outro do Sol. Não tento definir o roteiro de suas
falas, pois quero continuar me apegando à realidade e suas virtudes e defeitos são
essenciais para isso. Entretanto, sozinho, perco o parâmetro e não posso
afirmar se minhas mãos continuam provendo calor em forma de afago.
Caso pareça loucura, responsabilizo a brevidade.
Ampulheta
Perdeu-se na tentativa de contabilizar as loucuras
inofensivas que acumulou recentemente e também não sabe quantas vezes tentou fazer
essa contagem. Conhecia apenas as primeiras conseqüências de suas atitudes: o
isolamento, a claustrofobia de seu novo mundo e a sensação de voltar no tempo
sem precisar fechar os olhos.
Reencenou em sua imaginação os atos protagonizados por
alguns de seus personagens preferidos: Jon Osterman na superfície de Marte,
contemplativo; Desmond Hume a bordo de um navio, desesperado por sua constante;
Joel Barish dentro de si mesmo, agarrando com as unhas suas lembranças.
Foi instantâneo. Bastou visualizar a foto e à sua frente não
estava mais o computador, a mesa ou as paredes brancas do quarto. Fora
transportado de uma só vez para outros lugares conhecidos, como se pudesse
estar em todos eles ao mesmo tempo. Um sofá em meio ao barulho, corredores e
calçadas, incontáveis mesas de bar, carros, elevadores, outro computador, outra
mesa, “outra cerveja, por favor”. Imensa diversidade de lugares e companhias.
Em comum, a alegria indescritível suavizada pela necessária máscara de teatro.
A mulher da foto continuou a encará-lo. Apesar de estática, parecia
alternar entre o sorriso tímido e o olhar de quem já sabe de tudo. Mas a ilusão
se desfez ao lembrar-se de que não estava lá, onde e quando a foto foi tirada.
Um breve sentimento de culpa pela inveja infantil de querer estar no lugar da
lente e então a percebeu presente. De fato, ela nunca saíra de seus pensamentos,
como um adeus nunca respondido.
Ao final da madrugada, Roy Orbison o deixou indeciso: faltou
tempo para escolher entre “In The Real World” e “In Dreams”. Conheceu, assim, a
origem da areia em seus olhos ao acordar.
Para Sempre Setembro
Vinte e seis lágrimas tão salgadas quanto a água que me
cerca são combinadas pausadamente para formar o texto sobre o papel. Quanto
mais a dizer, menos legíveis as palavras. De qualquer maneira, falta uma
garrafa que me embriague e abrigue a mensagem.
A trilha sonora do filme que temo rever repete
indefinidamente em minha cabeça e Julie não se cansa de traduzir em recordações
o que sinto.
“...Je t’aime tant, je
t’aime tant…” - Uma possibilidade que ganhou vida breve e agora jaz em meus
constantes devaneios oníricos; aquela frase simples que ganhou uma resposta
complicada; o que ganhei em tão pouco tempo e que ainda desejo compartilhar.
“...About this one
night stand...” - Um atalho às avessas para prolongar a conversa; a
substituição do desespero pela felicidade através de um gesto espontâneo e
inesperado; uma vontade repentina de testemunhar o apocalipse naquele exato
momento.
“...You promised to
stay in touch...” - Essa distância que insiste em minar minha resistência;
esse tempo que pega carona nas asas a favor do vento e testa minha percepção.
A verdade é que, ainda que o corte pela navalha cega continue
a sangrar, a memória seleciona apenas o que me comove e me faz sorrir. Não por
ignorância, fantasia ou doença, mas por saber que nada do que realmente importa
de fato mudou em mim.
Na ilha que chamo de lar eu espero, é o que sei fazer.
Brinde em Viena
Não é surpresa para ele saber que o silêncio forçado não
funcionou. As tentativas de distração mostraram-se ineficientes e o jardim
satânico floresceu mais vigoroso. No entanto, ele está surpreso por não se
sentir frustrado, mas orgulhoso.
A vontade de dizer a ela mais que palavras muitas vezes é
substituída por gracejos improvisados apenas para vê-la sorrir. Porque o tempo
é escasso e o espaço, imenso. Natural é aproveitar os raros momentos juntos para
zombar do sagrado, alimentar a criatividade, celebrar trocadilhos infames e
fingir que poderia ignorar para sempre o que lhes é estabelecido.
Teme ter se transformado em um disco de vinil riscado na
última faixa do lado b, prolongando ao máximo o fim da canção. Os ouvidos não
lhe são concedidos e não pode adivinhar se um dia ela saberá que foi
presenteada com novas melodias. É estranho sentir os dedos calejados e a mão
dolorida ao acordar diariamente o violão.
Não se vê solitário, mas percebe-se incompleto. Falta a ele
a personificação do que mais lhe ocupa o pensamento e que representa, ao mesmo
tempo, desafio e inspiração. Falta um copo à mesa, um cheiro de cigarro que não
incomoda, uma opinião contrária, uma conversa que não se acaba. Falta o
conhecido olhar embriagado, a voz doce, o elogio inesperado e aquela sensação
de que o improvável poderia virar realidade.
E permanece a saudade de ser odiado.
Persistência da Memória
E foi então que tudo pareceu rápido demais.
O sorriso na janela do carro após um carinhoso e longo
abraço.
A cerveja que deixei esquentar e o sol torrando minhas
costas.
Uma trilha sonora marcada pela aleatoriedade sarcástica.
Conversa, conversa, conversa e um passeio turístico por uma
cidade fantasma.
Um dono de bar que muda de humor assim como o clima.
Um inesperado comentário anônimo mais que pertinente.
O sorriso que fez compensar minha ansiedade.
A certeza de que algumas poucas horas não seriam
suficientes.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
Emenda
O que não devo fazer sei e faço, o resto é apenas requentado. Em banho, Maria segue Madalena e joga a toalha, pois o ímã colado ao coração do Homem de Lata previne sua fuga em dó maior. Com paixão, tento a santidade. O ímpio revela-se bem-aventurado, nefando meio desligado. Aquele interruptor gasto indica que minha vida está por um fio e me deixa por alguns instantes em estado de choque. Lembro que sou péssimo condutor e bato com frequência em veículos de comunicação. Falho pelos cotovelos e provoco balbúrdia. Dalai Lama ao caos. Ordeno meus soldados de chumbo na prateleira – primeiro, o atirador. O alvo corre em minha direção e tenho somente um dardo. É tranquilizante.
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