A chuva torrencial desaba sobre os paralelepípedos que
acabam no cortiço. Parece querer lavar toda a imundície da rua junto aos
pecados ali escondidos, uma vez que não há quem possa lembrar quando a água
começou a cair do céu, muito menos um só vivente que ouse prever o fim dos maus
tempos.
Sobram na sarjeta os papelões agora definitivamente
inutilizados e as garrafas vazias de qualquer álcool, pois bêbados e mendigos escolheram
não se banhar. A rua está deserta, a hora, incerta. O céu está escuro há tanto
tempo que é impossível saber se a noite compareceu ao seu compromisso. Há os
constantes clarões dos relâmpagos, a parca iluminação titubeante de um poste
baixo na calçada e algumas poucas luzes nos quartos dos prédios antigos.
Poucos andares acima do nível do chão, protegidos pelo
desconforto de suas vidas solitárias, dois vizinhos se observam pelos vidros
fechados das respectivas janelas. Entre eles, o beco encharcado pelas infinitas
gotas de canivete e o ruído abafado dos trovões, escarcéu da ira divina em vão.
Ele ouve o mesmo disco de Ray Charles sem parar, é a única
voz que consegue se sobressair ao chiado de seus vinis empoeirados. Ela já se
acostumou com o som compassado dos pingos que caem do teto na bacia de metal e
nota apenas os miados de um gato faminto que passeia por suas canelas. Como um
brinde improvisado, ele bebe um gole de seu precioso combustível enquanto ela
acende mais um cigarro e puxa o cabelo para trás. Os olhares não se desviam.
Ele respira pausadamente numa tentativa inútil de organizar seus pensamentos.
Ela mal consegue manter suas mãos paradas sobre a mesa. Ele rabisca um desenho
no vidro embaçado por seu hálito. Ela balança a cabeça e ri timidamente para si
mesma. Algo mais que álcool ou tabaco aquece seus corpos.
É esse pouco que têm para despistar a tristeza. E o que é
pouco se torna extremamente importante. Pois sofrem com a angústia de saber que
a chegada do Sol é inevitável, porém imprevisível. Quando isso acontecer
deverão descer até a rua, colocar os pés no chão e desaparecer em meio aos
demais fodidos marginais maltrapilhos, esperando pela próxima tempestade.
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