terça-feira, 28 de setembro de 2010

“No fim tudo vai acabar bem”

Eu chorei tão pouco após aquele dia, quase nada. Eu não entendo, sempre fui extremamente emotivo e fico triste com a mesma facilidade e intensidade com que deixo a alegria tomar conta de mim, você sabia bem disso. Porém, até hoje, quase um ano depois, parte de minha mente parece sofrer de algum bloqueio. Só que essa parte não é a memória.

Recordo vários detalhes daquele onze de novembro em que você e eu morremos. Detalhes que gostaria de esquecer, dolorosos demais, chocantes demais. Não poderia ser diferente, foi o pior momento que já passei na vida. O telefonema logo que cheguei ao trabalho e que me deixou com taquicardia, a chegada em tua casa, o desespero ao te ver imóvel à cama, as pessoas chegando e também se desesperando, as decisões que deveriam ser tomadas depressa e das quais me incumbi, do jeito brusco e indiferente com que os estranhos te trataram até e no hospital, da corrida com papelada que nem sabia que existia, da “escolha” de um caixão e da coroa de flores (como se faz isso? Ainda não sei, mas escolhi), da preparação do velório, das bizarrices que surgem em formas de pessoas e situações típicas de ficção, do teu corpo quase irreconhecível na funerária antes dos preparativos, do sofrimento incalculável de quem sempre te amou, da noite, do dia seguinte, do enterro e da volta pra casa.

Aí eu já não conseguia mais chorar. Eu estava vazio, todos nós estávamos. Ainda carrego a culpa de não estar próximo a você em teus últimos dias. E sempre fomos tão próximos, tamanha a afinidade. Eu sei em que você acreditava e você conhecia meu ceticismo. Paradoxalmente, dirijo-me a você como se pudesse ainda ler o que escrevo. Mas na minha imaginação você lê, entende e até responde, afinal, você nunca foi embora de meus pensamentos.

Você parece não ter sofrido, exibia um semblante tranquilo que contrastava com o restante da cena naquele quarto. Parecia dizer, assim como a gente sempre dizia um ao outro: “Não se preocupe, tudo vai acabar bem. Se não for assim, é porque não acabou ainda”.

Honestamente, ainda não estou bem, e não sei se assim estarei algum dia. Sinal de que ainda não acabou de fato. E acaba?

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Meus Olhos Sempre Limpos

É uma alegria intensa ou aquela cena formidável do filme. Pode ser uma boa lembrança que veio de repente ou resultado do abraço apertado de quem já não se vê há muito tempo. Mas é nos inúmeros e ordinários acontecimentos do dia-a-dia resumidos na máxima “a vida é feita de coisas simples” que aparece com frequência. Combinamos assim: ela não se esconde e eu não a procuro. Mas a gente sempre se encontra para que ela me lembre que nascemos todos para brindar e que bom humor é tudo nessa vida.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Deixe-a Entrar

Ele esperou. Ano após ano ele esperou. Paciência sempre foi sua virtude mais aparente, e fez uso dela com o objetivo de conhecer mais as pessoas.

Foi assim desde o começo. Apaixonava-se de tempos em tempos, embora não se declarasse a ninguém. Num lugar e numa época em que as garotas geralmente eram frias e caladas apaixonava-se quando encontrava uma com quem podia conversar ou que, ao menos, fosse “gente boa”. Algumas vezes idealizava a menina de seus sonhos em alguém que conhecia apenas superficialmente para, logo depois, decepcionar-se totalmente. E o ciclo se repetia alimentado pela fantasia de encontrar a pessoa certa.
Modo de dizer. “Certa” não significava “certinha” ou perfeita nos mínimos detalhes. Certa seria a garota com quem tivesse alguma afinidade, que gostasse de falar de coisas sérias e tolas com a mesma intensidade, que tivesse personalidade e bom caráter. A aparência física nunca importou muito, mas como não encontrava ninguém, esperou.

Dedicou-se às poucas amizades que tinha para tentar amenizar os efeitos de sua insatisfação com o lugar e as demais pessoas – elas não eram bem vindas e já haviam sugado sua energia por tempo demais. Então surgiu a música e ele pôde falar sobre suas dores e seus amores imaginários através de suas composições instrumentais ao violão. A melodia era sua palavra, a trilha sonora do que acontecia em sua vida. De outra maneira, era mudo quanto às questões do amor, relacionamento e afins, e fugia do assunto como o vampiro da estaca. O que poderia dizer a respeito? Restava-lhe continuar esperando e foi isso que fez, até não dar mais importância e se conformar.

Exatamente por isso, a surpresa foi grande. Realmente não acreditava no que acontecera naquele momento em sua vida. Dez, onze anos (talvez mais) esmurrando ponta de faca para, então, encontrar a tal pessoa certa. Foi tão forte e intenso para ele que o fez repensar tudo, suas convicções, suas certezas, sua vida. Via-se sonhando novamente os sonhos antigos, de começar uma família, ter filhos e ser o melhor pai do mundo. Até a forma como aconteceu foi tão acidental, tal qual roteiro cinematográfico, que só poderia ter final feliz, e ele realmente acreditava nisso. Estava doente, sem saber. E também exatamente por isso foi grande a surpresa ao receber a notícia do fim do relacionamento. Três anos e algo mais de uma felicidade cega, falsa e solitária, percebida dessa maneira somente muito tempo depois.

Um juramento inútil de nunca mais sofrer tanto e, ao lado de novos amigos, muitos botequins mais tarde, já não se iludia mais, não esperava mais nada. Não estava trancado, mas procurava não se abrir demais. “Se acontecer, que bom, caso contrário, sem problemas” – esse era o novo lema, resgatando sua tradicional paciência. Mais uma vez, por inesperado acidente, encontrou uma nova mulher, com quem possuía maior afinidade e começou um novo capítulo de sua mal contada história, dessa vez com um “engajamento” maior, pois dividiu com ela uma casa e fez planos mais concretos em relação ao futuro. Em seu coração havia paz e estava realmente feliz. Achava que as brigas, as diferenças e personalidades opostas eram inerentes a qualquer relação. Entretanto, como um filme B de terror com final previsível e que insistimos em assistir até o fim, essa felicidade foi, uma vez mais, cruel por tê-lo cegado. Mas desta vez houve algo estranho, o casal se gostava, só não conseguia viver junto. Terminaram e recomeçaram tantas vezes que mesmo nele a paciência estava chegando ao fim. Começaram como amigos, depois namorados, casaram, namoraram em casas separadas e, seis anos mais tarde, voltaram a ser apenas amigos, embora distantes. Uma parábola, em todos os sentidos. Depois, ele quebrou o próprio juramento, tomou para si um breve período para chorar e voltou à rotina. O bar e os amigos, sempre eles, facilitaram o processo.

Desse tempo até o presente, fez novas amizades, reforçou as antigas, experimentou novos ares e reconheceu que poderia ser feliz sozinho. Teve uma ou outra ilusão, mas percebeu logo que não passavam de bobagens, talvez “flashback” do ácido do amor platônico adolescente. Focou sua vida em outras coisas, visando mais o lado profissional, que estava passando por uma mudança radical. Até algumas semanas atrás, esteve no conforto de sua estabilidade emocional e sequer pensava na possibilidade de alterar essa realidade.

E foi assim, pensando no trabalho, em serviços a fazer, prazos, na cerveja no fim do dia e nas próximas festas com os amigos, que se distraiu e não viu o carro vindo em sua direção em alta velocidade. Deixando de lado a metáfora repetitiva, porém verdadeira, sentiu algo que há muito tempo não sentia, uma profusão de sentimentos (nem todos isentos de preocupação, é verdade) e uma vontade quase infantil de querer que dê certo, apesar da dificuldade gigantesca. Começou sem perceber, como essas histórias geralmente começam, com recados e conversas que refletiam uma imensa afinidade. E o bom papo tornou-se constante e motivo de quase dependência. É pouco tempo, é verdade. Mas, talvez por ter passado tanto tempo pensando sobre o que queria encontrar, reconheceria imediatamente quando encontrasse. E ele não tem dúvidas, ao menos, não quanto a isso. Só que nada é fácil, ele sabe disso, e sua consciência entra em conflito. Ele já não sabe o que é certo ou errado. E também não depende apenas dele, assim, nada de fato ainda aconteceu. Ele ama uma possibilidade. Uma linda e adorável possibilidade. E, ironicamente, tudo o que ele pode fazer agora é esperar.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Uma dor que vale a pena

Ele andava por aí feito um bêbado que não sabe o caminho de casa. Consciente, porém absolutamente perdido e com a visão levemente turva, seus sentidos pareciam funcionar no piloto automático, em modo de economia de energia. Fazia algum tempo que estava assim, indiferente a tudo, sem desgostar, mas também sem demonstrar ânimo. Tudo estava confortavelmente estático e não parecia que a situação pudesse mudar. Talvez ele nem desejasse alguma mudança, poderia ficar assim até o final, e nem mesmo se preocupava em saber quando o final chegaria. Caminhou em passos tranquilos e velocidade constante, sem pressa alguma, até chegar a uma longa avenida que parecia infinita no horizonte. Parou por um breve momento e decidiu seguir adiante, pois não gostava de voltar atrás. O céu escurecia lentamente e, caminhando na contramão pela calçada, ele observava os carros em alta velocidade com faróis que quase o cegavam, todos seguindo o mesmo ritmo acelerado. Percebeu que um dos carros vinha mudando de faixa à medida que se aproximava, como se estivesse indeciso por onde seguir. Parecia querer sair daquele trânsito infernal, ainda que os outros veículos o ignorassem completamente. O carro estava agora na faixa próxima à calçada e estava muito perto. Por um instante ele pensou que o motorista voltaria à faixa ao lado, onde havia uma brecha. Mas estava enganado e, paralisado de súbito terror, viu o carro invadir a calçada, em sua direção, sem que desse tempo de desviar. É disso que se lembrou ao acordar minutos depois ao chão, sozinho. Nenhum sinal do veículo e o movimento na avenida não tinha se alterado. Sem entender, tentou se levantar, e foi aí que sentiu uma dor lancinante que não sabia ao certo de onde vinha. Ficou um tempo imóvel procurando se recuperar e, após um bom tempo, desistiu de esperar por ajuda. Com muito esforço e segurando o grito de dor conseguiu se levantar apoiando-se nas próprias pernas. E voltou a caminhar, dessa vez no sentido contrário, de costas para os veículos, arriscando ainda mais sua vida em passos inconstantes conforme a dor permitia. Queria saber se não estava louco, achar novamente o carro que o atropelou e seu condutor. Não para se vingar, mas para agradecer. Finalmente havia encontrado uma direção a seguir.

domingo, 5 de setembro de 2010

Nostalgia, de Adrian Veidt

Tudo é possível. Tudo mesmo. Até começar um post parafraseando o cantor Ritchie (sim, aquele do hit - sem trocadilho - "Menina Veneno"): a vida tem dessas coisas. Alguém se lembra disso?

Eu lembro não apenas disso, mas de muita coisa, e nostalgia é o meu ponto forte (ou fraco, não sei ao certo). Lembro que levava uma vida simples, pouco eletrônica, sem computador, internet, celular, I-isso, I-aquilo. Minhas grandes preocupações eram “o que vou fazer da vida?”, “Deus existe?”, “Quando sairei dessa maldita cidade?” e “Será que aquela garota sabe que gosto dela?”.

Eu queria fazer qualquer coisa que envolvesse criação. Sonhava em ver alguma história minha publicada em livro ou HQ, imaginava que um dia viveria de música e que trabalharia com cinema. Quem sabe até desenvolver um adventure game. Virei especialista na arte de começar projetos e não terminá-los. Poderia enumerar vários motivos, mas a verdade é que eu não sou disciplinado e quero sempre fazer tudo ao mesmo tempo, feito uma criança. Ainda assim, alguma coisa eu consegui: meu trabalho envolve criação e a música que faço tornou-se minha melhor forma de expressão (inclusive quando erro na hora de tocá-la). Idéias para novos projetos continuam surgindo e nunca enterrei os antigos, pois penso neles constantemente. De certa forma é tudo o que me restou de sagrado.

Foi ontem, lembro bem. Estava me formando no primeiro grau e, pouco depois, faria a crisma, encerrando a preparação como professor de catequese. Algo comum para alguém criado nas tradições católicas. O problema é que nunca entendi Deus. Nunca. Em criança associava Deus a castigo, alguém que eu deveria temer e que nos vigiava a todo instante, em todos os lugares. E eu achava que a figura dele não era como o clichê retratado em pinturas, o velho barbado e sério, mas uma pessoa jovem, magra, nem homem, nem mulher, rosto fino, olhos sempre fechados como se meditasse o tempo todo, coberto com um manto e sentado, cruzando as pernas e estendendo as mãos abertas em direção ao chão – uma espécie de yogi andrógino. Essa imagem simplesmente não combinava com alguém que eu deveria temer. Na adolescência minha curiosidade tornou-se incompatível com a religião. Tinha muitas perguntas que ninguém conseguia responder e, nos cinco anos e meio que estudei catequese, semana a semana só via minhas dúvidas aumentarem. Ainda assim, completei o curso e até dei aulas para crianças, uma vez que era requisito para fazer a crisma. Pode-se dizer que eu era um jovem Fox Mulder com seu pôster “eu quero acreditar”. A essa altura eu já estava lendo muito mais coisas diferentes e meu senso crítico começava a falar mais alto. Foi por uma frase de um livro despretensioso – “Ilusões”, de Richard Bach – que a ficha caiu. Na história, um personagem recebe um livro de presente contendo pensamentos curtos que devem ser lidos de maneira aleatória, de acordo com a vontade do leitor. Esse personagem então leva consigo o livro e o abre esporadicamente em uma página qualquer. Num momento trágico, porém determinante para a resolução da trama, ele abre o livro e encontra a frase: “Tudo neste livro pode estar errado”. Aquele livro dentro do livro poderia estar errado. O próprio “Ilusões” poderia estar errado. Qualquer livro que li poderia estar errado. Ou não. O que importa é que, a partir deste momento, minha razão não aceitou mais explicações rasas ou sem sentido, eu tinha de saber mais sobre tudo. Aos poucos e cada vez mais rápido Deus naturalmente deixou de ser. Era, na melhor das hipóteses, desnecessário. E a razão foi o que definiu meu lugar no mundo.

O ódio não é racional. É apenas uma reação, que pode durar segundos, dias, uma eternidade. Meu ódio tinha um nome: São José dos Pinhais. O que no início era apenas uma estranheza para alguém que vem de outra região quanto à frieza de uma cidade estéril (e seus habitantes) tornou-se um crescente ódio à medida que conhecia mais o ambiente e as pessoas. Com o tempo, passava os dias imaginando como seria morar em outro lugar, mais movimentado e bem menos provinciano. Infelizmente, minha péssima situação financeira alimentava meu comodismo e aceitei a idéia de que sair daqui demoraria bem mais que imaginava. Depois de muito tempo, morei cinco anos em Curitiba. Somente quinze quilômetros de um centro a outro, mas já fez uma grande diferença. Muita coisa mudou. Tanto que o ódio já não fazia sentido (como nenhum tipo de ódio realmente faz) e comecei a tratar a cidade de outrora com indiferença. Ironicamente, daqui a alguns dias, volto a morar aqui. Meu trabalho é aqui e a maior parte da vida social também. Tem outros porquês, mas o principal é que essa cidade não afeta mais meu humor. Continua com os mesmos problemas e provavelmente nunca irei me acostumar com isso. Entretanto, aprendi (um pouco tarde, talvez) que não é um limite geográfico que vai determinar o grau de envolvimento com as pessoas, gostando delas ou não. A gente muda. Sempre. Com quem mal mantinha contato hoje tenho forte amizade. E assim reforço minha antiga relação de amor platônico com a humanidade.

A vida tem mesmo dessas coisas. E eu gosto demais de lembrar todas ou, pelo menos, as mais significativas. Se existe essa nostalgia é porque eu mudei e conservei coisas boas para lembrar. E nostalgia é sempre perfumada.

Faltou algo? Ah, sim. A garota sabia. Elas sempre sabem.