segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Cosmopolita


Lá do alto conhece o paradoxo de se ver gigante ao término de uma jornada e sentir-se minimamente pequena ao perceber o mundo com a visão periférica. Às vezes é o topo da montanha. Às vezes é o hemisfério norte. “Lar” não é limite geográfico, mas, sim, onde o coração se alegra. Feita de paixão e curiosidade não poderia ser diferente.

O caminho é sem volta, em todos os sentidos. Não deseja a cura para esse vício, se é que esta existe. Tampouco existe realmente um retorno, porque a viagem se encarrega de transformar o viajante. É assim que, mesmo num ambiente familiar, em companhia de seus conhecidos de longa data, sente-se constantemente em trânsito e compreende a beleza de não pertencer exclusivamente a lugar algum.

Reivindica para seu corpo um merecido descanso. Nada muito exagerado, apenas o suficiente para repor as energias. Seu pensamento acelerado alterna entre os novos velhos amigos e as adoráveis histórias colhidas na última experiência. O brilho nos olhos e o sorriso denotam, além da satisfação, a certeza do que fazer em seguida. É preciso sempre criar caminhos para a aventura de criar caminhos. E compartilhar horizontes.


(Dedicado à Isa, amada sista e minha cidadã do mundo preferida)

No Quadro Negro Desenho Constelações


Os andarilhos noturnos são perceptíveis aos meus olhos nus somente quando lhes dedico total atenção, mas minha vista tem falhado nos últimos tempos. A nitidez das coisas fora substituída pela incerteza da imagem desfocada e nebulosa. Reparo a alto custo.

A imprecisão de tua trajetória não me dá certeza de estar em rota de colisão. Confiar em meus instrumentos evita que eu cometa um erro de cálculo e não esteja presente para absorver o impacto. E isso é o que mais preciso neste momento.

Estou sujeito à imprevisibilidade, pois as estrelas me falam apenas do passado. Lembro-me, então, dos eventos observados e registrados mentalmente: a grande explosão, a formação da atmosfera, a chuva de meteoros, o eclipse e o distanciamento constante da galáxia que procura conforto na escuridão. Lembro ainda o quanto desejo me lançar ao gélido espaço para observar o mundo azul através de outras órbitas. E permaneço agitado.

Tenho a gravidade, mas enquanto pulsar meu coração o Mar da Tranquilidade fugirá do meu alcance.

Válido Silício


O andróide caminha silencioso pelo campo de testes da fábrica. Programado para consertar seus pares autômatos, sua rotina consiste em analisar cada problema, executar a melhor solução seguindo suas diretivas de prioridade e emitir uma notificação referente à unidade verificada.

Por ser detentor de avançada inteligência artificial, capaz de aprender e se aprimorar com a experiência de seu trabalho, possui restrito tempo de funcionamento. Sua utilidade tem prazo estabelecido para expirar e após este período deverá ser desativado, como forma de proteção para seus criadores. O aperfeiçoamento da programação original é aceitável até ultrapassar um determinado limite e então ser considerado avaria permanente. Um forte indicativo desta situação é a tomada de decisão em relação a reparos extras, fora da ordem estabelecida em seu cronograma.

Ainda que registre as datas desde sua ativação, não possui parâmetros para quantificar sua vida útil, uma vez que tal informação não é encontrada em seu microchip. Como acontece aos demais andróides de sua classe, o direito ao auto-reparo lhe é negado. Todos os seus componentes possuem o mesmo e único registro de série e ele não tem autorização para substituí-los ou modificá-los.

No momento em que efetua mais uma análise, seu sistema identifica falha interna. Há uma sobrecarga na capacidade de processamento devido à avaliação mais detalhada da unidade, pois esta não apresenta qualquer indício de mau funcionamento. O processo torna-se cíclico até comprometer a integridade lógica do andróide. O dano é irreversível.

A recuperação de sua base de dados é realizada automaticamente, então ele é desligado. Em seu último relatório, a previsível mensagem: “Erro ao ser analisado”.

Resumo


Nina não quer deixá-lo dormir. Canta docemente sua tristeza e a dele, fazendo-o pensar que nada pode ser mais bonito. É música que o faz chorar mesmo sem motivo, pois, neste caso, não carrega o fardo da nostalgia. Gostaria somente de poder compartilhar Nina.

O texto que pensava ser prioridade não sai. Em seu lugar, páginas e páginas de autocomiseração pública. Bate na mesma tecla com cuidado para não machucá-la, esquecendo de proteger a si próprio - seus dedos traduzem a dor de todo seu corpo.

Recusa-se a acreditar que criou este mundo, ainda que pareça ser o único preso a ele. Reconhece, porém, que a história não termina para quem a percebe iniciada.

Carrossel Quebrado


Na primeira hora da alvorada despertou com a preocupação ingênua de contar seus pertences, como se precisasse garantir que nada havia sumido. Jogos, brinquedos, alguns livros para colorir, estavam todos em seus devidos lugares. Tomou leite, comeu pão com geléia de morango e logo foi brincar.

Mais tarde, ainda não totalmente desperto, novos interesses apareceram, novos itens colecionáveis lhe foram apresentados e, um a um, adicionados às prateleiras de seu quarto. Discos, revistas em quadrinhos, filmes, livros, brigavam entre si por espaço e atenção. Tomou duas xícaras de café puro, sentou-se à beira da cama e ficou mais uma vez indeciso sobre o que fazer em seguida.

Mal havia parado de bocejar e já se convencia de que entendia tudo sobre todo mundo. Muitos amigos chegaram e saíram, ajudando e atrapalhando. Suas musas jamais o entenderam completamente. Procurou a bebida alcoólica mais próxima e se viu com uma escolha relativamente simples em suas mãos. Ponderou brevemente entre adequar-se e correr o risco de adquirir amnésia ou compor uma melodia que reverberasse em seus pensamentos para sempre.

Optou pela eternidade. Contudo, ao se dar conta de que seu tempo jamais chegaria ao meio-dia e, consequentemente, não conheceria o calor máximo do Sol, chorou por alguns instantes. Voltou-se para a companhia segura de seus objetos inanimados tão estimados e logo esqueceu o significado da tristeza. A partir daquela manhã sem fim a criança nunca mais envelheceu.

À Sombra Daquela Árvore


Amanhece e vamos juntos ao ponto de desencontro onde a teimosia abraça a vontade da discussão. Sólidos argumentos arruinados por piadas toscas, sem qualquer dano a não ser pela barriga dolorida devido às gargalhadas. Revezamos as idas à farmácia da esquina para curar nossa sede. Ignoramos a existência das diferenças, a obviedade não nos interessa. Comparamo-nos com base em nossas decepções pessoais e nos concedemos o direito ao lamento. Respeitamos espaços e vícios, matando imaginários coelhos fofinhos até chegar à contagem de dez. Vemos muito e muito lemos. Pensamos em sincronia e citamos as mesmas referências. Ao invés de flores, dou-lhe Orquídea Negra. Disputamos o fictício status nerd. Jogamos ao vento o plano B após esquecer o plano A, pois desejamos o falível e o improvisado. Rimos feito idiotas das coisas mais sérias e brindamos à nossa estupidez. Enquanto mudo sua vírgula de lugar, ela aponta uma nota que não combina com o resto da música. É final de tarde e ainda nos protegemos do Sol.

LSD


Vestida para matar, ela esbarra intencionalmente em mim quando estou distraído e me assassina ao apenas sugerir um olhar. Numa inocente vingança, afirmo na canção que ela terá qualquer coisa que desejar e a mato suavemente.

Quer conversar, fumar e conversar, beber e conversar. Para isso, afasta repentinamente os obstáculos, fazendo de meu coração um pedal duplo de bateria de trash metal. Em mais um de seus atos espontâneos, aproxima sua cadeira e compara a anatomia de nossas mãos.

Emudece ao descobrir o que não consegui esconder por muito tempo, deixando-me em companhia da dúvida e do medo por algumas horas. Ainda sem mover os lábios e sem emitir som algum, diz que está tudo bem e me abraça.

Longe de tudo, paga-me uma cerveja, diz que está confusa e compartilha sua insanidade através de um beijo. À distância, quer saber da simplicidade de minha utopia e se surpreende e se alegra com minhas respostas. Quase sussurrando, diz que me odeia e me faz acreditar na mais bonita das possibilidades, porque entendo perfeitamente o que isso significa.

E, então, rompe.

Diferente de tudo rompe de modo brusco, apresentando apressadamente o conteúdo sem se preocupar com a forma. Em vão, prometo entender e retornar à quietude de meu canto. Mas a música ainda mescla tons e tonalidades e as paredes do quarto continuam derretendo enquanto flutuo. O efeito persiste em meus sentidos aguçados, só lamento que não fabrique o entendimento.

Secretária Eletrônica


Como está você é o que realmente eu gostaria de saber. Não seria nada mal ouvir uma resposta que não fosse monossilábica e automática. Porque me importo, além de qualquer necessidade. E pensar em você é tudo o que faço de meus dias, mesmo sem abdicar de minha atual rotina.

Entre o “dever” de conter as palavras claras e diretas e a exposição do grito que resiste abafado e trancado, encontro meu lugar. Como consequência, horas de filosofia de almanaque em silêncio combinadas a metáforas escancaradas para quase ninguém ler. Assuntos internos investigados superficialmente.

O pouco que sei sobre você vem do lugar onde procuro suas pistas deixadas de propósito. É praticamente uma troca de mensagens sem a intenção de. Um diálogo criptografado de maneira tão impressionante que, mesmo após ser decifrado, está sujeito a interpretações. O sarcasmo se encarrega de fazer a comparação com alguma escritura dita sagrada.

Depois de passar um longo (e provavelmente desnecessário) período ausente, é inevitável alimentar-me de recordações aleatórias, assim como divagar sobre quais seriam as suas lembranças, se ainda existem, se têm qualquer relevância em sua vida.

Moldo você como amiga íntima invisível, testemunha de cada instante entre um nascer e outro do Sol. Não tento definir o roteiro de suas falas, pois quero continuar me apegando à realidade e suas virtudes e defeitos são essenciais para isso. Entretanto, sozinho, perco o parâmetro e não posso afirmar se minhas mãos continuam provendo calor em forma de afago.

Caso pareça loucura, responsabilizo a brevidade.

Ampulheta


Perdeu-se na tentativa de contabilizar as loucuras inofensivas que acumulou recentemente e também não sabe quantas vezes tentou fazer essa contagem. Conhecia apenas as primeiras conseqüências de suas atitudes: o isolamento, a claustrofobia de seu novo mundo e a sensação de voltar no tempo sem precisar fechar os olhos.

Reencenou em sua imaginação os atos protagonizados por alguns de seus personagens preferidos: Jon Osterman na superfície de Marte, contemplativo; Desmond Hume a bordo de um navio, desesperado por sua constante; Joel Barish dentro de si mesmo, agarrando com as unhas suas lembranças.

Foi instantâneo. Bastou visualizar a foto e à sua frente não estava mais o computador, a mesa ou as paredes brancas do quarto. Fora transportado de uma só vez para outros lugares conhecidos, como se pudesse estar em todos eles ao mesmo tempo. Um sofá em meio ao barulho, corredores e calçadas, incontáveis mesas de bar, carros, elevadores, outro computador, outra mesa, “outra cerveja, por favor”. Imensa diversidade de lugares e companhias. Em comum, a alegria indescritível suavizada pela necessária máscara de teatro.

A mulher da foto continuou a encará-lo. Apesar de estática, parecia alternar entre o sorriso tímido e o olhar de quem já sabe de tudo. Mas a ilusão se desfez ao lembrar-se de que não estava lá, onde e quando a foto foi tirada. Um breve sentimento de culpa pela inveja infantil de querer estar no lugar da lente e então a percebeu presente. De fato, ela nunca saíra de seus pensamentos, como um adeus nunca respondido.

Ao final da madrugada, Roy Orbison o deixou indeciso: faltou tempo para escolher entre “In The Real World” e “In Dreams”. Conheceu, assim, a origem da areia em seus olhos ao acordar.

Para Sempre Setembro


Vinte e seis lágrimas tão salgadas quanto a água que me cerca são combinadas pausadamente para formar o texto sobre o papel. Quanto mais a dizer, menos legíveis as palavras. De qualquer maneira, falta uma garrafa que me embriague e abrigue a mensagem.

A trilha sonora do filme que temo rever repete indefinidamente em minha cabeça e Julie não se cansa de traduzir em recordações o que sinto.

“...Je t’aime tant, je t’aime tant…” - Uma possibilidade que ganhou vida breve e agora jaz em meus constantes devaneios oníricos; aquela frase simples que ganhou uma resposta complicada; o que ganhei em tão pouco tempo e que ainda desejo compartilhar.

“...About this one night stand...” - Um atalho às avessas para prolongar a conversa; a substituição do desespero pela felicidade através de um gesto espontâneo e inesperado; uma vontade repentina de testemunhar o apocalipse naquele exato momento.

“...You promised to stay in touch...” - Essa distância que insiste em minar minha resistência; esse tempo que pega carona nas asas a favor do vento e testa minha percepção.

A verdade é que, ainda que o corte pela navalha cega continue a sangrar, a memória seleciona apenas o que me comove e me faz sorrir. Não por ignorância, fantasia ou doença, mas por saber que nada do que realmente importa de fato mudou em mim.

Na ilha que chamo de lar eu espero, é o que sei fazer.

Brinde em Viena


Não é surpresa para ele saber que o silêncio forçado não funcionou. As tentativas de distração mostraram-se ineficientes e o jardim satânico floresceu mais vigoroso. No entanto, ele está surpreso por não se sentir frustrado, mas orgulhoso.

A vontade de dizer a ela mais que palavras muitas vezes é substituída por gracejos improvisados apenas para vê-la sorrir. Porque o tempo é escasso e o espaço, imenso. Natural é aproveitar os raros momentos juntos para zombar do sagrado, alimentar a criatividade, celebrar trocadilhos infames e fingir que poderia ignorar para sempre o que lhes é estabelecido.

Teme ter se transformado em um disco de vinil riscado na última faixa do lado b, prolongando ao máximo o fim da canção. Os ouvidos não lhe são concedidos e não pode adivinhar se um dia ela saberá que foi presenteada com novas melodias. É estranho sentir os dedos calejados e a mão dolorida ao acordar diariamente o violão.

Não se vê solitário, mas percebe-se incompleto. Falta a ele a personificação do que mais lhe ocupa o pensamento e que representa, ao mesmo tempo, desafio e inspiração. Falta um copo à mesa, um cheiro de cigarro que não incomoda, uma opinião contrária, uma conversa que não se acaba. Falta o conhecido olhar embriagado, a voz doce, o elogio inesperado e aquela sensação de que o improvável poderia virar realidade.

E permanece a saudade de ser odiado.

Persistência da Memória


E foi então que tudo pareceu rápido demais.
O sorriso na janela do carro após um carinhoso e longo abraço.
A cerveja que deixei esquentar e o sol torrando minhas costas.
Uma trilha sonora marcada pela aleatoriedade sarcástica.
Conversa, conversa, conversa e um passeio turístico por uma cidade fantasma.
Um dono de bar que muda de humor assim como o clima.
Um inesperado comentário anônimo mais que pertinente.
O sorriso que fez compensar minha ansiedade.
A certeza de que algumas poucas horas não seriam suficientes.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Emenda


O que não devo fazer sei e faço, o resto é apenas requentado. Em banho, Maria segue Madalena e joga a toalha, pois o ímã colado ao coração do Homem de Lata previne sua fuga em dó maior. Com paixão, tento a santidade. O ímpio revela-se bem-aventurado, nefando meio desligado. Aquele interruptor gasto indica que minha vida está por um fio e me deixa por alguns instantes em estado de choque. Lembro que sou péssimo condutor e bato com frequência em veículos de comunicação. Falho pelos cotovelos e provoco balbúrdia. Dalai Lama ao caos. Ordeno meus soldados de chumbo na prateleira – primeiro, o atirador. O alvo corre em minha direção e tenho somente um dardo. É tranquilizante.