domingo, 5 de setembro de 2010

Nostalgia, de Adrian Veidt

Tudo é possível. Tudo mesmo. Até começar um post parafraseando o cantor Ritchie (sim, aquele do hit - sem trocadilho - "Menina Veneno"): a vida tem dessas coisas. Alguém se lembra disso?

Eu lembro não apenas disso, mas de muita coisa, e nostalgia é o meu ponto forte (ou fraco, não sei ao certo). Lembro que levava uma vida simples, pouco eletrônica, sem computador, internet, celular, I-isso, I-aquilo. Minhas grandes preocupações eram “o que vou fazer da vida?”, “Deus existe?”, “Quando sairei dessa maldita cidade?” e “Será que aquela garota sabe que gosto dela?”.

Eu queria fazer qualquer coisa que envolvesse criação. Sonhava em ver alguma história minha publicada em livro ou HQ, imaginava que um dia viveria de música e que trabalharia com cinema. Quem sabe até desenvolver um adventure game. Virei especialista na arte de começar projetos e não terminá-los. Poderia enumerar vários motivos, mas a verdade é que eu não sou disciplinado e quero sempre fazer tudo ao mesmo tempo, feito uma criança. Ainda assim, alguma coisa eu consegui: meu trabalho envolve criação e a música que faço tornou-se minha melhor forma de expressão (inclusive quando erro na hora de tocá-la). Idéias para novos projetos continuam surgindo e nunca enterrei os antigos, pois penso neles constantemente. De certa forma é tudo o que me restou de sagrado.

Foi ontem, lembro bem. Estava me formando no primeiro grau e, pouco depois, faria a crisma, encerrando a preparação como professor de catequese. Algo comum para alguém criado nas tradições católicas. O problema é que nunca entendi Deus. Nunca. Em criança associava Deus a castigo, alguém que eu deveria temer e que nos vigiava a todo instante, em todos os lugares. E eu achava que a figura dele não era como o clichê retratado em pinturas, o velho barbado e sério, mas uma pessoa jovem, magra, nem homem, nem mulher, rosto fino, olhos sempre fechados como se meditasse o tempo todo, coberto com um manto e sentado, cruzando as pernas e estendendo as mãos abertas em direção ao chão – uma espécie de yogi andrógino. Essa imagem simplesmente não combinava com alguém que eu deveria temer. Na adolescência minha curiosidade tornou-se incompatível com a religião. Tinha muitas perguntas que ninguém conseguia responder e, nos cinco anos e meio que estudei catequese, semana a semana só via minhas dúvidas aumentarem. Ainda assim, completei o curso e até dei aulas para crianças, uma vez que era requisito para fazer a crisma. Pode-se dizer que eu era um jovem Fox Mulder com seu pôster “eu quero acreditar”. A essa altura eu já estava lendo muito mais coisas diferentes e meu senso crítico começava a falar mais alto. Foi por uma frase de um livro despretensioso – “Ilusões”, de Richard Bach – que a ficha caiu. Na história, um personagem recebe um livro de presente contendo pensamentos curtos que devem ser lidos de maneira aleatória, de acordo com a vontade do leitor. Esse personagem então leva consigo o livro e o abre esporadicamente em uma página qualquer. Num momento trágico, porém determinante para a resolução da trama, ele abre o livro e encontra a frase: “Tudo neste livro pode estar errado”. Aquele livro dentro do livro poderia estar errado. O próprio “Ilusões” poderia estar errado. Qualquer livro que li poderia estar errado. Ou não. O que importa é que, a partir deste momento, minha razão não aceitou mais explicações rasas ou sem sentido, eu tinha de saber mais sobre tudo. Aos poucos e cada vez mais rápido Deus naturalmente deixou de ser. Era, na melhor das hipóteses, desnecessário. E a razão foi o que definiu meu lugar no mundo.

O ódio não é racional. É apenas uma reação, que pode durar segundos, dias, uma eternidade. Meu ódio tinha um nome: São José dos Pinhais. O que no início era apenas uma estranheza para alguém que vem de outra região quanto à frieza de uma cidade estéril (e seus habitantes) tornou-se um crescente ódio à medida que conhecia mais o ambiente e as pessoas. Com o tempo, passava os dias imaginando como seria morar em outro lugar, mais movimentado e bem menos provinciano. Infelizmente, minha péssima situação financeira alimentava meu comodismo e aceitei a idéia de que sair daqui demoraria bem mais que imaginava. Depois de muito tempo, morei cinco anos em Curitiba. Somente quinze quilômetros de um centro a outro, mas já fez uma grande diferença. Muita coisa mudou. Tanto que o ódio já não fazia sentido (como nenhum tipo de ódio realmente faz) e comecei a tratar a cidade de outrora com indiferença. Ironicamente, daqui a alguns dias, volto a morar aqui. Meu trabalho é aqui e a maior parte da vida social também. Tem outros porquês, mas o principal é que essa cidade não afeta mais meu humor. Continua com os mesmos problemas e provavelmente nunca irei me acostumar com isso. Entretanto, aprendi (um pouco tarde, talvez) que não é um limite geográfico que vai determinar o grau de envolvimento com as pessoas, gostando delas ou não. A gente muda. Sempre. Com quem mal mantinha contato hoje tenho forte amizade. E assim reforço minha antiga relação de amor platônico com a humanidade.

A vida tem mesmo dessas coisas. E eu gosto demais de lembrar todas ou, pelo menos, as mais significativas. Se existe essa nostalgia é porque eu mudei e conservei coisas boas para lembrar. E nostalgia é sempre perfumada.

Faltou algo? Ah, sim. A garota sabia. Elas sempre sabem.

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