quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Quimeras

A ansiedade de Hyde para escapar de sua prisão mesmo que por um breve momento. A impaciência do gigante verde que destrói a própria razão antes de tudo. O inconformismo escarrado de Tyler diante do espelho sem nome. A carência doentia de Norman rabiscada em vermelho-sangue. Dos respectivos pares, o medo e a falta de comunicação. Dos outros, o desrespeito velado e o temor servil. De si, a completa ignorância e um punhado de memórias desconexas. A certeza cruel da solidão, a incapacidade de reconhecer a lógica, a reação brutalmente instintiva. E a fome.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Dádiva


Tome para si esta pequena porção do que sinto. Guarde-a aí dentro, o local mais seguro, para ser usada nos teus dias tristes. Porque assim também são os dias que regem meus sentimentos.

Receba o meu não-abraço e o meu não-beijo em tua boca repleta de silêncio. Sinta o não-calor de minhas mãos tateando delicadamente teu rosto e teus cabelos. Um não-desejo. Um tempo não-eterno. Um não-amor capaz de ignorar tudo o que está fora de lugar. E que nada pode.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Defeitos Um para o Outro


No pequeno mundo as pessoas sujeitas aos padrões que criam espontaneamente não se dão conta que limitam a diversidade. Porta afora o que se vê é a mesma película gasta pela continuidade da projeção, um cinema antigo sem ar condicionado, poltronas rasgadas e som repleto de falhas.

Sempre assistindo a tudo, observando os detalhes, há os dois ratos de auditório. Compartilham histórias que presenciaram e que merecem ser gravadas em forma de notas mentais. O vício é tão antigo quanto eles podem se lembrar.

Rir é um comportamento tão natural que duvidam da existência de outro gênero cinematográfico. Ainda que o que vêem seja triste e lamentável, o sarcasmo consegue encontrar seu espaço. É assim com seu próprio média-metragem, a ironia de se perceberem rindo de si mesmos ao invés de calarem sua amargura.

A pipoca é boa, o cinema sobrevive.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Putos e Ladrões


A chuva torrencial desaba sobre os paralelepípedos que acabam no cortiço. Parece querer lavar toda a imundície da rua junto aos pecados ali escondidos, uma vez que não há quem possa lembrar quando a água começou a cair do céu, muito menos um só vivente que ouse prever o fim dos maus tempos.

Sobram na sarjeta os papelões agora definitivamente inutilizados e as garrafas vazias de qualquer álcool, pois bêbados e mendigos escolheram não se banhar. A rua está deserta, a hora, incerta. O céu está escuro há tanto tempo que é impossível saber se a noite compareceu ao seu compromisso. Há os constantes clarões dos relâmpagos, a parca iluminação titubeante de um poste baixo na calçada e algumas poucas luzes nos quartos dos prédios antigos.

Poucos andares acima do nível do chão, protegidos pelo desconforto de suas vidas solitárias, dois vizinhos se observam pelos vidros fechados das respectivas janelas. Entre eles, o beco encharcado pelas infinitas gotas de canivete e o ruído abafado dos trovões, escarcéu da ira divina em vão.

Ele ouve o mesmo disco de Ray Charles sem parar, é a única voz que consegue se sobressair ao chiado de seus vinis empoeirados. Ela já se acostumou com o som compassado dos pingos que caem do teto na bacia de metal e nota apenas os miados de um gato faminto que passeia por suas canelas. Como um brinde improvisado, ele bebe um gole de seu precioso combustível enquanto ela acende mais um cigarro e puxa o cabelo para trás. Os olhares não se desviam. Ele respira pausadamente numa tentativa inútil de organizar seus pensamentos. Ela mal consegue manter suas mãos paradas sobre a mesa. Ele rabisca um desenho no vidro embaçado por seu hálito. Ela balança a cabeça e ri timidamente para si mesma. Algo mais que álcool ou tabaco aquece seus corpos.

É esse pouco que têm para despistar a tristeza. E o que é pouco se torna extremamente importante. Pois sofrem com a angústia de saber que a chegada do Sol é inevitável, porém imprevisível. Quando isso acontecer deverão descer até a rua, colocar os pés no chão e desaparecer em meio aos demais fodidos marginais maltrapilhos, esperando pela próxima tempestade.